Há 143 anos nascia em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, o escritor e jornalista Lima Barreto
Por Everton Victor
Reprodução: UFMG
A abolição dos negros, em 1888, é “celebrada” neste dia, apesar de críticas do movimento negro em comemorar a data. Curiosamente, neste mesmo dia, alguns anos antes, em 1881, nasceu no Rio de Janeiro um escritor negro que se tornou um símbolo da literatura brasileira. Encantou o Brasil com o dom da palavra, ao trazer para suas obras a sensibilidade, seu olhar aguçado do dia a dia, desabafos, sem perder o lado crítico, se tornando uma representatividade antes mesmo desta palavra ficar em alta. O nome dele é Afonso Henriques de Lima Barreto.
Já na infância, aos 6 anos, Lima Barreto teve que lidar com a morte de sua mãe, a professora Amália Augusta, vivendo com seus irmãos e seu pai, o tipógrafo João Henriques. Carmen Lúcia, professora da Uerj e escritora do livro “Lima Barreto em quatro tempos”, explicou como ele era um incansável estudioso e apesar das dificuldades nunca parou, frequentando espaços destinados à elite carioca. “Ele estudou no Liceu Popular Niteroiense e depois foi para a Escola Politécnica, com problema de saúde do pai, precisa assumir a família, e se tornar funcionário público, ficando difícil seguir na Politécnica”, acrescenta Carmen.
Na construção de seus textos, Lima também escreveu o que chamava de “retalhos”, diversos cadernos com suas anotações, leituras feitas e, curiosamente, recortes de jornais. A professora ressalta que Lima Barreto não estava à parte das questões políticas da época. “Ele batia em seus textos em questões que muitos intelectuais defendiam (...) Nacionalistas, que culpabilizam indivíduos pobres, que diziam que o Brasil não é uma nação civilizada”. Ao mesmo tempo, a linguagem nas obras dele estava próxima das ruas, de forma “lúdica” que ele aprendeu nos jornais. Já em maio de 1918 reúne suas crônicas no volume Mágoas e sonhos de um povo, criticando as reformas urbanas.
Influências
O escritor, durante a juventude, era um assíduo estudioso, estando inserido em debates sobre o contexto nacional e internacional. Escritores russos, como Tolstoi e Dostoievsky estavam presentes nas leituras de Lima Barreto. “Foi um dos primeiros a divulgar a literatura russa no Brasil”, afirmou a professora. Na revista A.B.C, Lima lançou o Manifesto Maximalista, que defendia uma sociedade diferente da que emergia no Brasil, abordando concentração de renda e terras, legalização do divórcio, e a revolução russa.
A professora aponta uma curiosidade de Lima: mesmo ele sem ir para a Europa, ele indicava para os amigos o que visitar por lá. “Ele que estava aqui sabia mais do que as pessoas que iam para lá, ele aproveitava para pedir livros”. Aliado à literatura, o contexto dos negros internacionalmente também era foco de leituras do escritor. “Ele estava a par do que acontecia fora do país, uma vez com os amigos na França ele pediu o livro “Le Préjugé Des Races” (O preconceito racial), do escritor Jean Finot, o único intelectual francês da época contra a teoria das raças”, explica.
Jornalista Lima Barreto
Ainda na juventude ganhou reconhecimento cedo entre seus pares, contribuindo em jornais. “Desde a Escola Politécnica ele já colaborava em jornais, como A Tagarela”, afirma Carmen. No Jornal do Commercio publicou em folhetins uma de suas mais notórias obras, o romance “Triste fim de Policarpo Quaresma”(1916), sendo considerado um pré-modernista. Também teve passagem na revista Floreal, em 1907, nos periódicos Correio da Manhã, revista Careta, Gazeta da Tarde, revista Fon-Fon, entre outros.
Uma de suas mais notórias produções jornalísticas é uma série de reportagens em 1905 sobre o Subterrâneo do Morro do Castelo para o jornal Correio da Manhã. Sendo uma mistura da ficção de tesouro enterrado no morro, ao mesmo tempo que traz uma denúncia sobre os malefícios da reforma urbana. Essa série de reportagens se tornou um livro, disponível até hoje. Em suas obras é notória a sátira e as ironias e caricaturas que estavam presentes nas obras de diversos escritores do início do século XX.
Linguagem Popular
Parte da Crítica atribui ao escritor Lima Barreto uma baixa qualidade linguística, por sua linguagem de fácil entendimento, o que para a professora Carmen não se sustenta, pois ele incorpora nesta fácil linguagem ideias de outros escritores e filósofos. “Ele tem um método que contradiz aquilo que a gente lê na Crítica e no senso comum, a gente lê que o Lima produzia de bar em bar, como se aquela produção viesse por acaso, mas não é bem assim, é muita pesquisa e muito estudo”.
A fase conturbada de Lima, o alcoolismo, era um problema presente, mas ele tinha consciência disso. “É interessante a gente ressaltar que a todo tempo existe uma auto consciência desse problema. Nos diários, ele fazia comentários que tinha que parar”, afirma a professora. Para ela, é um erro “justificar a obra por esse vício”.
Lima Barreto tentou duas vezes ingressar na principal instituição literária do país, a Academia Brasileira de Letras, e nas duas vezes foi negado - na primeira tentativa, seu pedido foi desconsiderado ainda na inscrição. De acordo com Carmen Lúcia, “não há um fator único que justifique isso. Há um viés político de poder que justifica a entrada de uns e não de outros. O Lima cronista e que usa a tribuna da imprensa não é um Lima que agradava todo mundo”. A Academia deu menção honrosa perto do fim da vida do autor, em 1920, pelo livro Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Racismo
A questão racial está presente não só nas obras, mas nas suas fases e vivências na cidade e no ambiente intelectual. Carmen classifica em três pontos o racismo e seu impacto na vida de Lima Barreto. “Quando ele usa a tribuna da imprensa denunciando o racismo na cultura brasileira usando todos os argumentos dos escritores que ele lia na época para falar das absurdidades que aconteciam em termos de negligência, violência e opressão, ele comentava com muita segurança sobre o massacre dos negros nos Estados Unidos depois da guerra civil e dizia: olha isso está acontecendo no Brasil”.
A construção dos textos como escritor, para Carmen, é influenciada pela questão racial. Ela cita o romance “Clara dos Anjos" (1948), publicado após sua morte, que traz críticas sociais e explora a construção da consciência racial da personagem. Enquanto no periódico Diário Íntimo, mostra como a questão racial o formou. “Quando Conceição Evaristo fala em escrevivência ela amplia esse processo de que sou eu e toda uma descendência que carrego comigo, isso me define, então ela fala da história de muitos, mas parte da primeira pessoa, parte da sua experiência, então é esse movimento que Lima capta desses pensadores do início do século e ele aprofunda em sua literatura”.
Legado
Reprodução: Brasil na Foto/Gov
Lima Barreto morreu precocemente, aos 41 anos, de ataque cardíaco por complicações do alcoolismo. Além do alcoolismo, lidou com a depressão e com sua breve passagem pelo hospício, que é abordada em sua obra Diário do Hospício, publicada em 1953. O escritor acumula um acervo de obras variadas, de contos, romances, diários, crônicas, artigos e reportagens.
Lima Barreto é doutor honoris causa pela UFRJ, onde estudou na Escola Politécnica, título que só veio 101 anos depois de sua morte. Ele também já foi homenageado na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 1982, pela Unidos da Tijuca. Além de contar com outros títulos, filmes, nome de ruas e biografias em sua homenagem.
Para o escritor Anderson Shon, a literatura negra perpassa as obras de Lima Barreto. Um dos livros de Anderson, o “Estados Unidos da África”, produzido em parceria com Daniel Cesart, traz o empoderamento negro em quadrinhos para o público adulto. Ele explica que ao longo de mais de 10 anos publicando livros, sendo mediador e palestrante da Bienal da Bahia, ainda é um desafio ser reconhecido pela Academia. “A gente não é visto pela Academia como saber, a menos que a gente esteja estudando alguém que está morto (...) A gente não precisa que uma geração morra para estudar ela”. No último sábado, o escritor lançou o romance “Não termine comigo, Joana”.
De acordo com a secretária dos Comitês de Cultura Roberta Martins, o Ministério da Cultura tem como princípio fomentar artistas negros, através de ações afirmativas nos seus principais projetos. “A gente tem a Lei Paulo Gustavo (R$3,8bi), a Lei Aldir Blanc (R$3bi), os artistas negros têm um percentual destinado obrigatoriamente para execução em municípios e estados para as suas produções, e isso é fundamental porque está incidindo efetivamente no financiamento”, afirma a secretária.
Roberta conta que a Cultura faz um resgate das personalidades negras através de editais, e quando celebra a memória dessas personalidades. “A Fundação Palmares tem uma espécie de panteão de personalidades negras que foi retomado nesse ministério, estão lá Lima Barreto, Jurema Batista, Léa Garcia, Martinho da Vila”. Para a secretária, esse resgate é uma ponte com a população negra de hoje, “é trazer os brasileiros para próximo de nós”, ressalta.
Comments