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  • Foto do escritorLorrane Mendonça

A retomada da política antimanicomial e a luta contra o retrocesso e necessidade de inclusão

Atualizado: 12 de set. de 2023

A volta gradual da ciência no tratamento psiquiátrico abandonada pelos últimos governos


Manifestação pede o fechamento de manicômios e respeito às pessoas que sofrem de doença mental

Reprodução: Brasil de Fato


O governo Lula (PT) pretende retomar a reforma psiquiátrica e fechar os últimos hospitais dedicados a pessoas com transtornos psíquicos, conhecidos popularmente como "hospício". A ideia central da nova equipe é expandir e integrar toda a rede de serviços, principalmente as equipes de saúde da família e os CAPs (Centros de Atenção Psicossocial), focando em pessoas em situação de vulnerabilidade.


A decisão da retomada ocorreu após os governos de Temer e Bolsonaro, em que o financiamento de novas unidades foi paralisado e substituído por comunidades terapêuticas para dependentes químicos, administradas, em sua maioria, em bases religiosas. Em 2022, o governo de Jair Bolsonaro, publicou um decreto em que extinguiu a Coordenação de Saúde Mental, destinando à Secretaria de Atenção Primária à Saúde a competência de coordenação dos processos de implementação, fortalecimento e avaliação da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e da Rede de Atenção Psicossocial.


Segundo Isabella Paz, mestranda do programa de pós-graduação de Psicologia Social da Uerj, a Reforma Psiquiátrica Brasileira se iniciou no final da década de 70 durante o processo de redemocratização do país. O processo reformista desencadeou uma série de problematizações em relação ao modo de tratamento ofertado às pessoas com transtornos mentais e às concepções acerca da loucura.


“Eletrochoque, camisa de força, lobotomia, isolamento, fome, sede, desumanização: todos esses fatores faziam parte do cotidiano dos hospícios. Essas pessoas eram mantidas internadas e isoladas da sociedade, com a justificativa de uma certa necessidade terapêutica. É possível identificar que a forma de tratamento estava diretamente ligada ao modo como a sociedade enxergava a loucura. Os hospícios eram instituições reforçadoras da segregação, um ‘depósito social’ de pessoas consideradas indesejadas, uma tentativa preconceituosa de higienização social”, explica Isabella.



Pessoas vão as ruas e manifestam no dia da luta antimanicomial (18/05)

Reprodução: Brasil de Fato


Ela ainda destaca que houve um grande esforço de profissionais, usuários dos serviços e familiares para a criação de um Campo da Saúde Mental que priorizasse uma perspectiva psicossocial, sobretudo, o cuidado em liberdade. “Destaco a regulamentação dos serviços tipo CAPS, em 2002, como uma das principais conquistas do campo, já que os serviços atuam de acordo com a lógica territorial e se constituem como substitutivos à instituições asilares”.


Para a mestranda, a Reforma Psiquiátrica pode ser configurada como um processo social complexo, que, além de uma renovação terapêutica e assistencial, prevê a construção de um novo lugar para a loucura, que ultrapasse perspectivas estigmatizantes. “Acredito que a Reforma Psiquiátrica seja sim válida neste momento. É válida por estar ligada ao fortalecimento de aspectos democráticos, por nos fazer questionar nossos preconceitos e desejos de segregação e por fomentar a construção de novas possibilidades de vida e cuidado para pessoas vulnerabilizadas socialmente”, pontua Isabella.


O livro “Holocausto brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex, denuncia um dos maiores genocídios do país no Hospital Colonia, em Barbacena, Minas Gerais. As pessoas que eram enviadas para o hospital, a maioria à força, nem precisavam ser diagnosticadas com algum transtorno mental. Mais de 70% dos pacientes não sofriam com nenhuma doença do tipo, eram pessoas em vulnerabilidade social que estavam à margem, vítimas de políticas segregacionistas e excludentes. A obra é parte da luta contra o Processo de contrarreforma da Saúde Mental no Brasil, um conjunto de contrarreformas fundamentado no princípio autoritário do encarceramento e instituído por meio de reformas estruturais que separam as políticas de saúde mental e aprofundam o racismo estrutural na sociedade.


Isabella fala que existe uma série de ações em políticas públicas para a reinserção social de pessoas com problemas mentais, como a criação de Residências Terapêuticas, casas comuns disponibilizadas para pessoas que passaram por grande período de internação, perderam seus vínculos familiares e não têm onde morar.


“Essa é uma medida para promover o convívio com o território e comunidade para que as pessoas tenham o direito de viver em liberdade, algo tão primordial. Porém, mesmo com essa estratégia de reinserção social, dentro da minha experiência no campo, já presenciei relatos de profissionais dizendo sobre como uma das grandes dificuldades enfrentadas nas Residências Terapêuticas era lidar com a vizinhança que se incomodava por estar perto de pessoas que antes estavam internadas em hospitais psiquiátricos. Assim, era preciso toda uma mobilização dos profissionais das Residências e também do CAPS responsável para mediar a relação entre os moradores da Residência e os vizinhos”, observa Isabella.


Recentemente, aconteceram alguns casos de ataques a escolas, e de acordo com mapeamento da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) sobre casos de ataques em escolas por alunos ou ex-alunos, o primeiro episódio foi registrado em 2002. À época, um adolescente de 17 anos disparou contra duas colegas dentro da sala de aula de uma escola particular de Salvador.


Foram listadas 22 ocorrências desde 2002, sendo que em uma ocasião o ataque envolveu duas escolas. Em três episódios, o crime foi cometido em dupla. Em cinco, os atiradores se suicidaram na sequência. Ao todo, 30 pessoas morreram, sendo 23 estudantes, cinco professores e dois funcionários das escolas. Do total de casos, 13 (mais da metade) estão concentrados apenas nos últimos dois anos. Muitas políticas de segurança em ambientes escolares estão sendo visadas no momento, mas é importante lembrar que nesses casos, a assistência psicológica às vítimas e aos agressores é necessária para combater o problema de forma eficaz.


Para Isabella, há um risco muito grande em se fazer uma ligação direta entre os recentes ataques em escolas com a loucura e o consistente movimento de luta por direitos e cidadania de pessoas com transtornos mentais. “É preciso rebater a ideia de que os autores desses atos são loucos, pois incentivar esse modo de pensar é também reforçar o estigma de periculosidade e criminalização da loucura, invisibilizar o sofrimento psíquico de pessoas com transtornos mentais e ir na contramão dos preceitos da Reforma Psiquiátrica. Ser “louco” não é crime!”, destaca a mestranda.


O que está acontecendo com a saúde mental?


Em 2017 o Brasil liderou o ranking mundial dos transtornos mentais, considerados as “doenças do século XXI”, de acordo com dados de estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS). O país também ficou em segundo lugar em casos de depressão,: foram 11 milhões de brasileiros com a doença. Cientistas relacionam esses números ao modo como funciona a sociedade atual.


Segundo Isabella, é de extrema importância olhar para essas formas de sofrimento como reflexo das nossas dinâmicas sociais. Há uma tendência de lidar com o sofrimento de maneira individualizada, como diagnosticar uma pessoa, prescrever uma série de medicamentos e sugerir que se tenha uma rotina mais “saudável” e menos estressante pudesse ser uma solução pertinente para questões muito mais amplas.


“Como se estressar menos no trabalho se você tem uma jornada exaustiva e pouca garantia de direitos? Como não ficar ansioso com a violência se você e sua família presenciam constantemente tiroteios e confrontos territoriais? Como não se deprimir com a fome, com a pobreza, com a homofobia e racismo?”, indaga a mestranda.


Isabella ainda diz que existem políticas públicas que se propõem a discutir e atenuar essa série de complexidades, mas a questão vai muito além das políticas de Saúde Mental. São também as políticas de Assistência Social, de Educação, de Segurança, políticas direcionadas à saúde do trabalhador, ao enfrentamento à violência contra mulheres, políticas para população em situação de rua, entre tantos outros campos políticos e seus desdobramentos que devem atuar em conjunto em prol de melhorias de vida para a população.


E ainda tem o fator estigmatizante, já que para algumas pessoas é muito difícil procurar ajuda por medo de sofrer preconceito da sociedade, como a exclusão social, a ideia de que pessoas “loucas” são perigosas ou como se a doença fosse definir a personalidade, vontades e desejos do indivíduo.


“O preconceito e o estigma impactam acentuando e se tornando mais uma fonte de sofrimento para essas pessoas. No campo de discussões da Saúde Mental é utilizado o termo “duplo da doença mental”, justamente para evidenciar esses impactos que afetam pessoas com transtornos mentais. Sendo assim, para além do sofrimento gerado pelos sintomas de um transtorno mental, há também o sofrimento associado às construções conceituais em torno do adoecimento psíquico”, fala Isabella.






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