Pulverização das transmissões de partidas de futebol em diferentes canais e plataformas gera dificuldades para o torcedor brasileiro
Sucesso das plataformas de streaming propiciam novo cenário para as transmissões esportivas
Foto: Leonardo Siqueira
Chegar em casa e assistir ao jogo do time de coração após um dia cansativo de estudo ou trabalho é um alívio na rotina de muitos brasileiros. No entanto, essa prática está se tornando uma missão cada vez mais difícil e cara devido à pulverização das transmissões esportivas em diferentes plataformas de streaming e emissoras de televisão, podendo chegar ao custo de R$ 135,50 por mês. Um cenário que faz com que o torcedor tenha que enfrentar diferentes obstáculos para assistir a um jogo de futebol.
O problema atinge o torcedor de várias formas: desde a necessidade de possuir uma internet de qualidade e estável para assistir aos jogos até o pagamento das assinaturas de diferentes plataformas de streaming e pacotes da TV por assinatura. Além disso, muitos ficam prejudicados por não conseguirem acompanhar a multiplicação de plataformas e canais on-line.
José Passini, botafoguense, jornalista e integrante da Netolab, grupo de criação de conteúdo digital para o canal do youtuber Felipe Neto, chama atenção para a quantidade de canais que transmitiram os jogos do seu time de coração em um período de apenas um mês, dificultando o acesso dele e de muitos torcedores: “Meu padrasto não conseguiu acompanhar todos os jogos do Botafogo nesse período, porque ele nem sabia onde iam passar os jogos. E quando sabia, não sabia como botar o jogo sozinho, baixar o aplicativo ou entrar no site, criar uma conta, assinar”, relatou Passini.
No último mês de abril, a equipe carioca teve seus jogos transmitidos em oito canais diferentes, variando entre televisão (aberta e fechada) e plataformas de streaming: CazéTV, Paramount+, Prime Video, Star+, ESPN, SporTV, Premiere e Globo.
Diante dessa pulverização das transmissões, o torcedor precisa de diferentes acessos para assistir ao seu time, como por exemplo, um acesso à internet de qualidade e o pagamento de assinaturas de diferentes plataformas de streaming, o que não condiz com a realidade econômica de muitos brasileiros.
Fonte: Autoral
Custos com assinaturas de plataformas e pacotes de internet limitam o acesso à partidas de futebol
Imaginando um cenário em que o torcedor opte por assinar todos os pacotes de plataformas de streaming mostrados acima (incluindo o Premiere, que é um canal de TV por assinatura), ele irá ter um custo de R$ 135,50 por mês (considerando os planos básicos de cada pacote). Esta simulação, no entanto, não considera os gastos com planos de TV a cabo e pacotes de internet, o que elevaria ainda mais os custos.
Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios 2022, levantamento feito anualmente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 15 milhões de domicílios no Brasil não têm acesso à internet, o que corresponde a 20% do total. O estudo mostra que o principal motivo para a falta de internet nessas residências é, em primeiro lugar, o preço (28%), seguido da falta de habilidade das pessoas com tecnologias (26%). Além disso, a pesquisa identificou que, entre os domicílios com acesso à internet, 10 milhões deles têm a rede móvel como conexão principal, que muitas vezes não apresenta a estabilidade adequada para assistir a um jogo de futebol.
Anderson Santos, professor-adjunto da unidade Santana do Ipanema/Campus Sertão da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e pesquisador do Grupo de Pesquisa Crítica da Economia Política da Comunicação (Cepcom/UFAL/CNPq) e da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme), destaca: “A internet não é democrática. Então se a transmissão de jogos vai pra internet, mesmo que seja gratuito, dependendo do lugar em que está não tem acesso. Além de todos os pacotes, ainda tem que pagar internet de uma qualidade razoável.”
Torcedor do CSA, time de Alagoas, Anderson relata sua dificuldade para conseguir acompanhar todos os jogos de seu clube de coração, que disputa a terceira divisão do Campeonato Brasileiro, competição que não possui transmissão da TV aberta: “Tem uma pulverização que traz um conjunto de novos problemas para a gente analisar”, afirmou o professor.
Além do campeonato nacional, o CSA já participou, neste ano, do Campeonato Alagoano e da Copa do Nordeste, com jogos em diferentes canais e plataformas. No caso da Copa do Nordeste, por exemplo, o professor enfatizou que chegou a pagar R$ 10,99 para assistir a um jogo avulso do torneio em uma plataforma de streaming, visto que as assinaturas mensais são caras e que não havia uma opção gratuita para assistir ao jogo desejado.
A pulverização das partidas de futebol ainda confunde torcedores e esconde muitos campeonatos. Diante de tantos canais, sites e plataformas, muitas vezes uma simples ação de se descobrir onde será transmitida determinada partida acaba por se tornar uma difícil missão.
A Copa Sul-Americana, por exemplo, segundo Anderson, ficou escondida justamente por estar em uma plataforma de acesso limitado e longe da TV aberta, até mesmo com a final brasileira entre Athletico-PR e Red Bull Bragantino em 2021, transmitida apenas pelo pay-per-view da Conmebol TV. Extinta no final do ano de 2022, a Conmebol TV deu lugar ao Paramount+, que divide as transmissões da Sul-Americana com SBT (TV aberta), ESPN (TV fechada) e Star+ (streaming).
Nesta mesma trilha, e trabalhando em contato direto com a internet e usuário ativo de redes sociais, José Passini relata observar muitos questionamentos de torcedores a respeito deste cenário: “Eu vejo a reação da maioria absoluta das pessoas não gostando dessa divisão. Muita gente reclama do delay (atraso das imagens), jogo travando, qualidade de imagem e de não saber onde assistir, principalmente pessoas um pouco mais velhas”, declarou.
Fonte: Autoral
Veículos responsáveis pelas transmissões da Copa do Brasil, Campeonato Brasileiro e Libertadores
O infográfico acima evidencia a divisão dos direitos de transmissão dos três principais campeonatos disputados pelos clubes brasileiros: a Copa do Brasil, a Série A do Campeonato Brasileiro e a Copa Conmebol Libertadores. As competições se dividem, portanto, entre diferentes canais e plataformas, inclusive com diferentes transmissões e direitos de exclusividade dentro de um mesmo campeonato. Vale ressaltar que os jogos do Athletico-PR como mandante pelo Campeonato Brasileiro são transmitidos pela Cazé TV (streaming), TNT Sports (TV a cabo) e Rede Furacão (streaming), visto que o clube não possui contrato com a Globo para transmissões dos jogos da competição na TV fechada.
As velhas novas mudanças
A comunicação se transforma, historicamente, de acordo com o surgimento de novas tecnologias e as tendências de produção e consumo, até aí tudo bem! Não sugerimos evitar essas transformações! E com o futebol ou streaming não é diferente.
Para Rafael Casé, jornalista e professor da Faculdade de Comunicação Social (FCS) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), as transformações que resultaram na aquisição dos direitos de jogos de futebol pelas plataformas de streaming se dá em um processo concorrencial de demanda: “É inevitável que os esportes sejam cobiçados por essas empresas. O esporte tem uma demanda muito grande e colocar campeonatos importantes como conteúdo dessas plataformas é garantia de um faturamento bastante significativo”, afirmou Casé.
Segundo Casé, as novas possibilidades de conteúdos oferecidos pelas mudanças tecnológicas despertam uma sede de consumo muito grande, o que acaba por refletir nas lógicas de oferta e demanda de produtos, neste caso, os jogos de futebol. No Brasil, as transmissões esportivas começaram, através do rádio, em 1932, chegando posteriormente à televisão nos anos 1950, e, com o passar do tempo, se dividindo entre TV aberta, TV fechada e pacotes de pay-per-view, até migrar também pelas plataformas on-line nos dias atuais. Sendo assim, diante desse cenário de multiplataformas e pulverização das transmissões, Rafael Casé afirma que a vasta possibilidade de escolha de conteúdos é um aspecto sedutor para a aquisição desses streamings, mesmo que não haja o consumo de grande parte desses produtos.
No entanto, apesar das grandes mudanças, não significa necessariamente que os “antigos” veículos de comunicação serão extintos por conta do sucesso dos streamings. Para o professor Anderson Santos, o cenário tende a ser de uma coexistência, visto que a popularização das transmissões on-line ainda dependem de uma evolução do acesso à uma internet de qualidade, além de que a TV aberta ainda expressa uma força significativa no país: “É onde a maior parte da população tem acesso”, destacou Anderson.
O torcedor vira consumidor
A pulverização dos direitos de transmissão faz com que as empresas e os veículos de comunicação disputem cada vez mais entre si pela atenção do torcedor de futebol. Diante disso, Anderson Santos acredita que o futebol passa por um processo de mercantilização e de transformação desse torcedor em um consumidor: “A lógica do capitalismo nas últimas décadas entra também nas questões culturais. O futebol, enquanto entretenimento cultural relevante, também passou por isso”, comentou. Ou seja, a paixão pelo futebol e o próprio esporte em si, passa a ser visto cada vez mais com uma visão mercadológica.
Um dos fatores que contribuiu para a constituição deste cenário foi a Lei 14205, sancionada em 2021 pelo presidente Jair Bolsonaro, também conhecida como “Lei do Mandante”. Pela mudança na legislação, os clubes mandantes das partidas, ou seja, aqueles que jogam em casa, passaram a ter o direito de negociar a transmissão de seus próprios jogos. Anteriormente, o canal interessado em transmitir o duelo precisava negociar com ambas as equipes.
Além disso, a mudança abriu a possibilidade dos clubes realizarem a sua própria transmissão, o que, para Anderson, gerou novas problemáticas. Para ele, essa pulverização faz com que a transmissão dos canais de clube se torne quase que uma assessoria de imprensa: “Vai ter uma transmissão voltada literalmente para o consumidor dela, que é o torcedor do próprio clube.” Sendo assim, torcedores rivais, e até espectadores neutros diante do confronto, passam a reclamar de uma transmissão imparcial, que por vezes chegam até mesmo a ignorar a equipe adversária e sua torcida que também está assistindo à partida pelo mesmo canal por conta da exclusividade.
Este foi o caso do duelo entre Fluminense e Flamengo pela Taça Rio de 2020, transmitido pela FluTV, no YouTube. À época, o tricolor carioca fez valer a Medida Provisória 984/20, assinada por Bolsonaro, que também assegurava ao clube mandante a negociação dos direitos de transmissão.
Fonte: Autoral
Transmissões esportivas se espalham por diferentes emissoras e meios de comunicação
Um mundo ideal
As exclusividades dos direitos de transmissão são um dos fatores que limitam cada vez o acesso do torcedor aos jogos do seu time. Para Anderson Santos, esse cenário se torna difícil de ser revertido diante da lógica de mercado existente, visto que os jogos exclusivos são fundamentais para os modelos de contratos e de assinatura. No entanto, ele defende um modelo de regulamentação de transmissão no qual alguns jogos seriam considerados como de direitos de acesso livre e gratuito, pensando o futebol como um patrimônio sócio-cultural, e não apenas como um produto midiático.
Segundo o professor, o modelo teria como proposta a transmissão obrigatória em TV aberta de alguns jogos de maior relevância para a população, como finais de grandes campeonatos, jogos de título de torneios nacionais de pontos corridos e partidas da seleção brasileira: “Tentar montar o modelo que possa atingir o direito social de acesso a um jogo decisivo, ao mesmo tempo que não perca a exclusividade”, explicou. Dessa forma, portanto, a pulverização das transmissões se encaixaria no modelo de mercado de contratos por exclusividade, espalhadas entre as diferentes emissoras e plataformas, e ao mesmo tempo possibilitaria o acesso gratuito de jogos mais relevantes de forma mais democrática, independentes de conexão à internet e de pacotes por assinatura, seja pela TV fechada ou plataformas de streaming.
Renovar é necessário. Assim como oferecer um acesso mais democrático aos torcedores apaixonados por seus clubes de coração diante dessa crescente do mundo digital.
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