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  • Eduardo Souza e Lorrane Mendonça

Quando a balança atrapalha a brincadeira

Atualizado: 13 de set. de 2023

Consumo de ultraprocessados cresce no Rio de Janeiro, estado onde uma em cada dez crianças de 2 a 4 anos é obesa; projeto da Uerj ajuda no tratamento da obesidade infantil


Entre as pernas de Kelciane Santos, a tímida Laís Batista, de 7 anos, falava entre os dentes e ria sozinha quando a mãe lhe perguntava algo. A menina é paciente do projeto Pais e Alunos Pela Alimentação Saudável (Papas), uma pesquisa da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) sobre o tratamento comportamental de crianças de 7 a 12 anos com obesidade. Com a mão escondendo o rosto e com um sorriso doce, Laís ia perdendo a timidez conforme a mãe falava sobre o assunto. “Ela não se importa, gosta do corpo dela do jeito que é. Eu me preocupo porque já sofri com sobrepeso, e eu me maltratava muito por isso, sofri muitos problemas psicológicos, me julgava demais. Não quero nunca que minha filha sinta isso, ninguém precisa sentir essa dor”, afirmou Kelciane.


Segundo a mãe, a maior dificuldade da filha é realizar exercícios e organizar a alimentação. “Na maioria das vezes precisamos comer fora por conta do meu trabalho, e isso me preocupa muito. Tento oferecer coisas mais saudáveis, mas ela resiste”, explicou Kelciane. No projeto Papas, os pacientes recebem orientações sobre alimentação saudável e atividade física. Os atendimentos acontecem no no Instituto de Medicina Social (IMS), no 6º andar do campus da Uerj no Maracanã.


Joana Brandão, coordenadora de campo do projeto, afirmou que as consultas são mensais e que o acompanhamento dura quatro meses. Para participar, o responsável deve assinar um termo de consentimento livre e esclarecido e outro documento no qual consta que não há punições para o paciente caso ele abandone o projeto. Brandão também destacou as condições que impedem a participação: a criança não pode estar tomando remédio para perda de peso nem sofrer com doenças que favoreçam a obesidade, como o hipotireoidismo. Iniciado em outubro de 2022, o Papas atende atualmente 44 famílias, mas oferece 120 vagas no total. A equipe é formada por profissionais contratados, professores e pós-graduandos do IMS das áreas de medicina, nutrição e educação física.



Para Laís, assim como para muitas crianças fluminenses, comer de modo saudável virou um desafio cada vez maior diante do avanço dos alimentos ultraprocessados, como biscoitos recheados e sucos de caixinha. Esses produtos são ricos em calorias e açúcar, mas geralmente pobres do ponto de vista nutricional. No Estado do Rio, em 2019, entre crianças de 2 a 4 anos, 62 de cada 100 comeram ultraprocessados. Em 2020 já eram 90 a cada 100, e em 2021 91,7 em 100. Entre as crianças de 5 a 9 anos, o cenário é semelhante: 70% consumiram estes produtos em 2019, índice que chegou a 93% em 2020 e 91,2% em 2021. Os dados foram publicados pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), vinculado ao Ministério da Saúde.



Segundo a nutricionista Julia Marques, o padrão alimentar baseado na ingestão de grandes quantidades de açúcar e ultraprocessados é uma das principais causas da obesidade infantil. “A grande oferta de industrializados voltados justamente para o público infantil com preço acessível e embalagens atraentes faz com que exista um consumo maior desses produtos desde muito cedo, aumentando as chances de ganho de peso”, explicou a nutricionista.


De acordo com o Guia Alimentar para a população brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde, a composição nutricional desbalanceada dos alimentos ultraprocessados favorece doenças do coração, diabetes e vários tipos de câncer, além de contribuir para aumentar o risco de deficiências nutricionais. Por isso, o guia orienta evitar o consumo desses produtos.



Entre os ultraprocessados, o que passou a ser mais consumido foi biscoitos, doces e guloseimas. Em 2019, 48,5% das crianças fluminenses entre 2 e 4 anos consumiam esses produtos; em 2020, 68,1%, e em 2021 71,1%. Entre as crianças de 5 a 9 anos, os dados são quase idênticos: 56,5% em 2019, 68,1% em 2020 e 71,1% em 2021. Pelos dados do Sisvan, na faixa etária de 2 a 4 anos, 9,69% são obesas no estado do Rio de Janeiro, taxa próxima da média nacional, que é de 10,33%.




A nutricionista Marques destaca que a criança, diante do apelo dos ultraprocessados, estabelece uma relação conflituosa com a própria alimentação. É como se o problema fosse uma comida (o biscoito) ou uma preparação específica (a fritura), enquanto o que é realmente delicada é a exposição precoce dessa criança aos sabores muito doces e artificiais. No projeto Papas, o tratamento da obesidade infantil prevê a mudança do padrão alimentar do grupo familiar, para que a criança não tenha mais acesso aos produtos ultraprocessados. “É possível recorrer a técnicas lúdicas para facilitar o processo, como desenhar rostos com os alimentos no prato ou usar formas de cortes divertidos para frutas e sanduíches”, contou Marques.


Enquanto sobe o consumo dos ultraprocessados, o de frutas oscila muito. De acordo com dados do SISVAN, o consumo de frutas entre crianças de 2 a 4 anos oscilou consideravelmente nos últimos anos. Entre 2019 e 2020, os números subiram de 58% para 81,1% e, em 2021, caíram para 70,4%. O mesmo fenômeno ocorreu com as crianças entre 5 e 9 anos: em 2019, 60% consumiam frutas, em 2020 o número subiu para 73,8% e caiu para 66,3% em 2021.



O principal obstáculo no tratamento da obesidade é fazer a criança aderir aos sabores naturais dos alimentos. Nesse quesito, os ultraprocessados são muito mais atrativos porque contêm aditivos químicos que realçam o sabor, conquistando facilmente o paladar infantil. A participação familiar na mudança dos hábitos alimentares é fundamental para o processo, pois a criança passa a consumir os mesmo produtos que os seus familiares a partir de um ano de idade.


O impacto da gordofobia na saúde mental das crianças

De acordo com a psicóloga Rosana Valencia, os traumas sofridos podem resultar em depressão, ansiedade e em algumas vezes chegar a casos extremos. "Alguns pacientes se recusam a sair de casa por vergonha e medo de serem excluídos ou desprezados. A sensação de vazio e abandono impera na maioria dos casos”, explicou Valencia. Segundo a especialista, crianças são mais sensíveis porque ainda não amadureceram psiquicamente e muitas vezes são incapazes de reagir às críticas depreciativas. “Como será para a criança ver que seus amigos sentem aversão ao seu corpo ou não compreendem as restrições a certos jogos ou brincadeiras? Para cada criança, essa experiência é única”, afirmou Valencia.


Ela disse que convive com muitos relatos de gordofobia, quando pessoas gordas são julgadas como inferiores ou repugnantes pelo seu peso. Além do preconceito em si, a gordofobia impõe um padrão estético que valoriza a magreza, tornando-a sinônimo de boa saúde. Valencia afirmou que essa mentalidade motiva uma parte das consultas, realizadas por solicitação da escola ou pela demanda dos próprios pais, incomodados com a aparência da criança ou com seus hábitos alimentares. Nesses casos, os responsáveis também são encaminhados para tratamento.


Uma das vítimas desse preconceito é Morgana Marques, outra paciente do Projeto Papas. Todos os dias, a menina, de apenas oito anos, vai ao colégio acompanhada de sua avó. Brincalhona, Morgana gosta de divertir os colegas contando piadas e fazendo brincadeiras. Certa vez, a professora começou a aula fazendo a chamada, e, com um jeito espontâneo e desinibido, Morgana respondeu “presunto”, para sinalizar sua presença à professora. Não demorou muito quando ouviu de um colega um comentário que a deixaria triste e envergonhada. “Morgana é um ‘presuntão’ de baleia”, disse uma criança se referindo ao corpo da menina. “Ela começou a andar de casaco mesmo no calor, eu fiquei preocupada e conversei com a psicóloga dela. Descobri que minha filha estava com vergonha do próprio corpo, isso acabou comigo”, disse Suzanne Miranda, mãe de Morgana.


Acompanhada da mãe e de sua avó, Morgana tinha acabado de sair da consulta no projeto Papas, vestindo um cropped e um short jeans. Suzanne destaca que, hoje, sua filha se reconhece e se aceita do jeito que é. “Eu já passei pelo mesmo problema que ela, já cheguei a ter obesidade mórbida e precisar fazer bariátrica. Hoje em dia gostar do meu corpo, aceitar minha estética, é uma conquista muito grande, e não quero nunca que ela passe pelo o que passei”, relatou Suzanne.


A avó de Morgana, Iarasy Miranda, acompanhou atentamente Suzanne falar sobre os problemas que enfrenta com sua filha. “É um choque de gerações, né? Eu não fiz com a Suzanne o que ela faz com a Morgana. Houve momentos em que eu acertei, mas também teve momentos em que eu falhei, e mesmo com a minha ausência em momentos que ela mais precisou de mim, a Suzanne não deixa isso acontecer com minha neta”, desabafou Iarasy.



O principal obstáculo ao tratamento psicológico das crianças obesas é o ensinamento de que o alimento é a solução para todos os conflitos. “Desta maneira, [a criança] passa a ter dificuldades para diferenciar estados de tensão emocional, confundindo-os com a necessidade de ingerir algo. Tal associação persiste até a idade adulta, quando surgem dificuldades para o indivíduo encontrar o seu estado de saciedade”, afirmou a psicóloga Valencia. O uso da comida como recompensa ou punição também é um problema frequente, pois a criança se sente obrigada a comer para agradar os pais ou para não ser castigada.

Tanto Morgana quanto Laís foram acompanhadas pelos seus responsáveis nas consultas. A participação familiar é indispensável no tratamento psicológico das crianças obesas porque é através da família que a criança construirá sua identidade. De acordo com Valencia, “trazer a família para o setting terapêutico é fundamental, pois o vínculo entre paciente x analista no caso de atendimento infantil precisa abranger os pais também”.


Gustavo Luís, de 11 anos, foi o primeiro a chegar para o atendimento no projeto universitário na ensolarada manhã de terça-feira. Assim como os outros pacientes, ele estava acompanhado pela sua avó, Cleusa Rosa. O menino, muito simpático, não teve problemas em falar sobre suas vivências. Mostrou-se um pouco desconfortável quando falou da escola, recolhendo seu corpo enquanto falava. “É desagradável ouvir coisas ruins sobre o meu corpo, me chamam de gordo, obeso e baleia. Mas também não fico perto dessas pessoas que não me fazem bem, eu tento não ligar”, explicou Gustavo.


Cleusa conta que o neto gosta de conversar sobre as coisas que acontecem em seu dia, e quando escuta algum comentário negativo sobre seu peso, desabafa com ela. “Quando ele chega e fala a respeito, eu digo para ele: ‘seu nome é qual? Gustavo, né? Então você só atende quando te chamarem pelo nome’. Eu me sinto péssima quando essas coisas acontecem, no final do ano passado mesmo teve uma ocasião muito chata. O Gustavo foi presentear uma coleguinha com um boné do Flamengo e ela xingou ele de baleia, disse que ele era feio”, contou Cleusa. Ela falou também dos preconceitos que já sofreu quando criança e como ela usa suas experiências para educar Gustavo.



“Nos anos 70 eu estudei no Colégio Santo Inácio, e eu era a única preta da turma, mas nunca ninguém me tratou diferente. Porém, quando o novo reitor do colégio foi visitar a minha sala, ele viu todo mundo branco, menos eu. E disse para a sala toda que ‘black and white’ não se comunicava, e essa foi a primeira vez que eu entendi que a cor da minha pele incomodava. Então eu converso com o Gustavo que nós também temos o direito de ocupar lugares, independentemente de preconceitos”, completou Cleusa.


Serviço Projeto Papas:

Endereço: Rua São Francisco Xavier, 524, Maracanã, Rio de Janeiro – RJ – Cep 20550-900

Instituto de Medicina Social, sala 6005, BLOCO E

Email: projetopapas2022@gmail.com










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